domingo, 24 de outubro de 2010




“A moça e o moço, quando entre si, passavam-se um embebido olhar, diferente do dos outros; e radiava em ambos um modo igual, parecido. Eles olhavam um para o outro como os passarinhos ouvidos de repente a cantar, as árvores pé-ante-pé, as nuvens desconcertadas: como do assoprado das cinzas a esplendição das brasas. Eles se olhavam para não-distância, estiadamente, sem saberes, sem caso. Mas a moça estava devagar. Mas o moço estava ansioso. O menino, sempre lá perto, tinha de procurar-lhes os olhos. Na própria precisão com que outras passagens lembradas se oferecem, de entre impressões confusas, talvez se agite a maligna astúcia da porção escura de nós mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade. Mas o menino queria que os dois nunca deixassem de assim se olhar. Nenhuns olhos têm fundo; a vida, também, não.”

“Se eu, se você gostar de mim... E como saber se é o amor certo, o único? Tanto é o poder errar, nos enganos da vida... Será que você seria capaz de esquecer de mim, e, assim mesmo, depois e depois, sem saber, sem querer, continuar gostando? Como é que a gente sabe?”


(Nenhum, nenhuma/ Primeiras Estórias – João Guimarães Rosa)

sábado, 2 de outubro de 2010


''Ontem chorei. Por tudo que fomos. Por tudo o que não conseguimos ser. Por tudo que se perdeu. Por termos nos perdido. Pelo que queríamos que fosse e não foi. Pela renúncia. Por valores não dados. Por erros cometidos. Acertos não comemorados. Palavras dissipadas.Versos brancos. Chorei pela guerra cotidiana. Pelas tentativas de sobrevivência. Pelos apelos de paz não atendidos. Pelo amor derramado. Pelo amor ofendido e aprisionado. Pelo amor perdido. Pelo respeito empoeirado em cima da estante. Pelo carinho esquecido junto das cartas envelhecidas no guarda- roupa. Pelos sonhos desafinados, estremecidos e adiados. Pela culpa. Toda a culpa. Minha. Sua. Nossa culpa. Por tudo que foi e voou. E não volta mais, pois que hoje é já outro dia. Chorei...''

Caio Fernando Abreu